Notas do autor: Neste trabalho os nomes chineses aparecem transcritos de acordo com o Projeto de Transcrição Pinyin do Idioma Chinês, adotado oficialmente na China e pela UNESCO.
Notas da CBKW: o artigo é de autoria e responsabilidade de Kao Chian Tou. Sua reprodução só é possível mediante a expressa autorização do mesmo.
Apareceu pela primeira vez como “wushu” (técnica marcial) num registro literário do século VI. No entanto, tinha conotação de técnicas militares daquela época, e ao mesmo tempo, era também conhecido por outros nomes como “wuyi” (arte marcial), etc.
Na primeira metade do século XX foi chamado na China de técnica nacional (“guoshu”, que na ocasião, antes do aparecimento da ortografia adotada hoje, era transcrito como “kuoshu”) e de “kungfu” (cuja transcrição atual seria “gongfu”) que pode ser traduzido, a grosso modo, como “habilidade acumulada”. Após a Revolução de 1949 voltou a ser chamado de “wushu”.
Com o surgimento das armas de fogo, muitas armas brancas deixaram de ser utilizadas para fins de guerra, perpetuando-se apenas no meio popular. Houve significativas mudanças no manuseio destas armas em virtude deste fato, assim como ocorreu com as técnicas a mão livre. Estas técnicas constituem a parte essencial do wushu, cuja definição foi dada pelas autoridades desportivas chinesas em 1998, como sendo: “modalidade cujo conteúdo principal é constituído por movimentos de ataque e defesa e que se expressa através de rotinas (taolu) e de combate (sanshou / sanda), visando tanto o aperfeiçoamento físico como espiritual.”
Sem dúvidas que a natureza do wushu é de ataque e defesa. Teria surgido em forma de técnica de caça numa sociedade primitiva, e gradualmente foi sendo utilizado em conflitos tribais, consolidando-se como técnica de guerra regular. Em algum momento não claramente definido da história, o wushu começou a se desmembrar da técnica de guerra própriamente dita, evoluindo-se para uma modalidade praticada predominantemente como entretenimento, defesa pessoal ou para fins profissionais não-militares. Esta evolução teria sido lenta, gradual e até hoje, às vezes, é difícil definir qual parte do wushu é completamente marcial e qual não é.
Todo caso é muito bem definida a sua natureza de ataque e defesa, tanto nos movimentos desferidos com as mãos, como com cada uma de suas armas, configurando o wushu como arte.
Como já mencionado pela definição, o wushu se expressa através de rotinas e de combate. São duas formas básicas de expressão formadas ao longo do tempo que coexistem e se complementam mutuamente. O combate refere-se à aplicação prática, enquanto as rotinas constituem uma maneira um tanto artística de se externar o mesmo conteúdo marcial.
O wushu, por ser parte da cultura chinesa, está intimamente ligado a outros aspectos, tais como: medicina, filosofia, religião, ética, e até literatura; basta observar que muitos movimentos de wushu recebem nomes poéticos.
Pode-se dividir a história do wushu em algumas etapas. O surgimento foi decorrente das necessidades de sobrevivencia. Nos primórdios da civilização, uma pessoa saía para a caça de subsistência ou procurava se defender de um animal e usava algum instrumento rudimentar a que tinha acesso, assim surgiram as primeiras técnicas e armas. Estas técnicas e armas se aperfeiçoaram acompanhando a evolução desta sociedade primitiva. É provável que os movimentos de ataque tenham também sido incorporados em danças religiosas ou ritos, mas seria um tanto precipitado considerar estas danças como sendo rotinas no conceito atual.
Posteriormente surgiram os conflitos entre clãs ou tribos, nos quais foram aplicados os conhecimentos acumulados na prática da caça. Inicialmente, as armas teriam sido as mesmas utilizadas até então. Não se pode afirmar com precisão que na fase inicial se praticavam estas técnicas de maneira regular. Entretanto, conforme estes conflitos se tornavam mais freqüentes e sistemáticos, armas específicas foram criadas e as práticas das técnicas também se intensificaram. Pode-se imaginar que os guerreiros mais valentes eram freqüentemente solicitados a fazer alguma demonstração, então, também pode-se imaginar que surgiram as primeiras expressões de rotinas, ainda que rudimentares ou improvisadas. Na mesma perspectiva, supõe-se também o surgimento das competições. Aliás, deveriam parecer mais lutas que torneios e muitas vezes a posição de líder teria sido disputada nestas competições.
A consolidação como uma arte marcial ocorreu quando a sociedade se evoluiu para a nação. Soldados profissionais praticavam técnicas bem objetivas, utilizando armas projetadas para uma finalidade bem definida. Surgem também as “artes de guerra”, ou seja, a estratégia militar. Este período corresponde às primeiras dinastias da China (século XX a.C até V a.C, aproximadamente) e as batalhas se davam com bigas intercaladas com a infantaria. Este estilo de batalha influenciava diretamente no desenho e no manejo das armas, geralmente confeccionadas com bronze.
As armas curtas, espadas por exemplo, além de curtas eram largas, devido às características metalúgicas do bronze, o que significa que o confronto corpo-a-corpo deveria ser evitado. Por este motivo, as armas longas que tinham a função de combater à distância possuíam o punho bem longo e sua ação era predominantemente transversal/plana e raramente longitudinal/linear. As armas longas mais comuns eram archa (“ge”), machado (“yue”) e alabardo (“ji”) enquanto a lança (“mao”) era muito usada como dardo. Isso não significa que o combate a curta distância tenha sido raro.
Uma nova classe social surgiu: os guerreiros. Era bem vista e muitas vezes se confundia com a própria nobreza. As competições passaram a adquirir um aspecto um pouco mais desportivo, mas mesmo assim eram essencialmente de luta e não de rotinas. A esta altura, as rotinas perderam um pouco o brilho pois, existiam outros meios de treino mais objetivos. A prática de arte marcial passou a fazer parte do currículo da educação regular da aristocracia na Dinastia Zhou.
Com o surgimento da siderurgia e com a adoção da cavalaria em larga escala, o desenho das armas sofreu uma mudança radical. As armas curtas se tornaram mais longas e as armas longas tiveram o comprimento do punho reduzido e a ação desta última passou a ser predominantemente linear/ longitudinal. Tome como exemplo: um soldado a cavalo usa a lança para espetar, em função da velocidade do cavalo; para cortar, em vez de um machado usaria um sabre, agora mais longo, resistente e leve, com maior campo de ação. Um soldado da infantaria já prefere lutar de perto, uma vez que possui uma espada mais longa que por sua vez é bem mais ágil do que uma arma longa. O manejo das armas evoluiu acompanhando a mudança do seu respectivo desenho.
A evolução do wushu rumo a uma modalidade desportiva, sem deixar de ser marcial, começou por volta do século VI quando a China experimentou uma fase de prosperidade. A guerra se torno menos frequente e a nobreza continuava a praticar o wushu mais por tradição ou para entretenimento do que por necessidade; as competições com regras bem mais civilizadas se tornaram comuns. O povo também passou a imitar a nobreza na prática do wushu, por razão de status. Esta parcela das técnicas praticadas por civis foi se diferenciando do restante praticado por militares profissionais. Algumas armas passaram a ser praticadas somente na modalidade desportiva, que é o caso da espada. Definitivamente ela foi substituída na prática pelo sabre no meio militar, onde seu uso pelos oficiais apenas indicava a hierarquia. Várias correntes se formaram e as rotinas se consagraram como parte importante do wushu desportivo, incluíndo as rotinas combinadas. Foi neste período que as técnicas de sabre e a luta livre chinesa foram transmitidas ao Japão, dando origem a kendô e sumô
Na dinastia Song (século X), devido às frequentes perturbações sociais e políticas, a prática do wushu foi bastante difundida, visando finalidades bem objetivas, foram criadas as “associações” de wushu e os estilos atuais começaram a se definir. Neste período, surgiram várias obras literárias famosas sobre as teorias e as técnicas de wushu. Durante as dinastias Ming e Qing (Manchu), a maioria dos estilos atuais se consolidou e o wushu recebeu um sangue novo, devido à reintrodução das técnicas de guerra trazidas de volta por generais ou membros da nobreza que buscavam refúgio no meio popular ou nos templos. Apareceram as primeiras tentativas de classificação dos estilos de wushu. As academias e sociedades secretas se tornaram comuns e várias obras de renome sobre o wushu foram escritas neste período.
Na era republicana (primeirta metade do século XX) da China, devido ao nacionalismo emergente, o wushu ganhou um novo nome, “guoshu” (“kuoshu” na grafia antiga), que significa “técnica nacional”, lançando um movimento para resgatar e desenvolver este esporte. Academias oficiais foram criadas em várias províncias e principais cidades, além da Academia Central em Nanjing, que começou com o nome de Academia Central de Pesquisa de Wushu. Houve uma tentativa de sistematização, livros didáticos foram publicados e campeonatos nacionais promovidos. Com a invasão japonesa, este movimento perdeu força e a maioria dos alunos das academias oficiais se juntaram à resistência, alguns poucos ainda estão vivos no inicio do século XXI e são professores de renome na China, tanto no continente como em Taiwan.
Após a revolução de 1949, o wushu como uma modalidade desportiva tradicional foi incentivado novamente, orgãos oficiais e academias foram criadas. No início dos anos 60 foram criadas as primeiras rotinas de competição como tentativa de padronização, no entanto, na segunda metade da mesma década, devido às conturbações socias pelas quais a China passou, o wushu perdeu um pouco de força como qualquer outro esporte. Foi justamente nesta época que o wushu se tornou muito conhecido fora da China, com o nome de kungfu. No fim dos anos 70 o governo chinês voltou a dar ênfase aos esportes e o wushu foi reintroduzido nas faculdades de educação física e incrementou seu conteúdo criando novas rotinas. Foi fundada em 1990 a IWUF – International Wushu Federation, da qual a Confederação Brasileira de Wushu/Kungfu é membro fundador. O campeonato mundial acontece a cada dois anos desde 1991. Recentemente a IWUF foi aceita como membro do Comitê Olímpico Internacional.
Dada a sua longa história e difusão ampla num país de grande extensão territorial como a China, o wushu possui uma grande variedade no conteúdo, onde o regionalismo é bastante acentuado. Via de regra, as rotinas e o combate têm presença de destaque nos estilos.
As rotinas podem ser executas a mão livre ou com armas, individualmente ou por mais de uma pessoa (combinadas). Cada estilo possui características relativamente nítidas que permitem uma fácil identificação. A classificação das rotinas praticamente define os estilos aos quais estas rotinas pertencem. É comumente aceita uma classificação que agrupa os estilos em “escolas” em função de sua característica predominante. Por outro lado, uma mesma arma pode estar presente em vários estilos e as rotinas desta arma geralmente variam conforme as peculiaridades de cada estilo, apesar de uma mesma rotina famosa de certa arma poder fazer parte de vários estilos. As armas mais conhecidas são: espada, sabre (facão), lança, bastão, corrente, ganchos, bastão articulado etc.
O combate contempla a luta em si, o treinamento de base e o treino simulado. Não se deve confundir o treino simulado com rotinas combinadas. O propósito do primeiro, em forma de uma seqüência curta, é exclusivamente ilustrar a aplicação dos golpes e aumentar a habilidade em desferi-los, enquanto a rotina combinada, mais longa, visa também a demonstração e possui movimentos conjuntivos sem finalidade marcial. No Taiji há uma forma considerada como combate, que se chama “tuishou”, geralmente praticada por duas pessoas que tentam sentir a intensidade e o movimento da força do adversário e desequilibrá-lo num momento adequado.
Como uma modalidade desportiva moderna, o wushu vinha se desenvolvendo a uma velocidade que surpreende. Cerca de quinze anos após a sua fundação, a IWUF está se empenhando a levar o wushu para o mundo olímpico e o nível dos campeonatos internacionais não deve nada às modalidades profissionais. Sem dúvida, um futuro promissor aguarda pelo wushu, mas é um prêmio que exigirá de seus adeptos um esforço redobrado e contínuo, pois os praticantes de wushu sabem muito bem que o resultado só vem depois de muita dedicação.